Os consumidores populares brasileiros foram
mantidos à margem do mercado por tanto tempo, que para sobreviver e garantir um
acesso mínimo às mercadorias e produtos do seu cotidiano, criaram vínculos
fortíssimos entre os membros da família celular e ampliada.
E foi essa unidade familiar que garantiu ao longo
de décadas construir suas casas, financiar eletrodomésticos essenciais, como
geladeira, aparelho de tv, móveis de quarto e sala.
E empresas como a Casas Bahia, que souberam
respeitar essa integridade financeira familiar, oferecendo crédito confirmados
e renovados mensalmente, através do carnê, conseguiram participar dessa
“riqueza acumulada na base da pirâmide brasileira”.
Até que surgiram as facilidades atuais do crédito
oferecido através de cartões, cheque especial, empréstimo consignado e as mais
variadas formas de parcelamento das prestações, com juros embutidos.
Na ponta da oferta, o crédito continua a ser
validado pelo CPF do candidato. Como é também a responsabilidade individual
para o pagamento das prestações. Quando a prestação não é paga, o nome do
consumidor é negativado.
Mas as compras continuam a ser realizadas. Ou
através de cartões de crédito de outros membros da família, ainda válidos. Ou
se usa o nome de membros da família (celular ou ampliada) que estão com o “nome
limpo” no mercado.
As grandes redes, bancos e financeiras que entopem
essa base de pirâmide com crédito abundante desconhecem, ou talvez ainda seja
conveniente não perceber, que a decisão de quais prestações honrar, quais
cartões de crédito manter ativos, qual cheque especial deixar estourar ainda
tem como referencia a boa e velha unidade familiar.
Uma unidade familiar que continua a ser sustentada
pelos laços financeiros da época (que é recente) em que esse povo nem sequer
era considerado consumidor pelo mercado.
Mas uma unidade familiar que é decisiva na hora de
compor a renda familiar ampliada, com a oferta de mais empregos e com a
expansão da demanda por serviços.
E é essa unidade familiar que ajuda a decidir o que
pagar, quando pagar e quanto pagar, diante da pressão da necessidade, urgências
e compras por impulsos. Tendo como referencia não apenas o ganho individual,
mas a renda composta da família.
O carnê da Casas Bahia, uma inspiração de Samuel
Klein nas cadernetas das mercearias brasileiras, vinculava o consumo às
famílias a um responsável dessa família por honrar, mensalmente, o seu
pagamento.
Tanto é que fazíamos questão que o carnê fosse pago
no nosso guichê. Assim mantínhamos e monitorávamos o relacionamento, a
disponibilidade e a motivação consumidora de nossos “fregueses”, como Samuel
Klein, o “patrão”, como gosta de ser tratado, insiste que sejam chamados, até
hoje.
E em caso de atraso nos pagamentos ou de inadimplência
tínhamos condições de ajustar nosso atendimento, sempre personalizado, para
ampliar prazos, renegociar dívidas e, assim, manter o cliente ativo e
fidelizado.
Atualmente, com o tsunami de crédito oferecido em
massa, mas vinculado a CPFs individuais, de maneira despersonalizada, o que
temos é a resposta também despersonalizada das famílias consumidoras da base da
pirâmide.
São consumidores populares que acumularam uma
sabedoria do mercado que usam, quando necessário, a seu favor.
Essa sabedoria acumulada ao longo de imensas
dificuldades de aceitação pelo mercado formal lhes ensinou, por exemplo, que a
negativação do nome só dura cinco anos.
Como não têm bens vinculados às dívidas (e as leis
brasileiras não prevêm tais garantias) aprenderam que a principal punição, em
caso de inadimplência, é serem negativados por cinco anos. E só.
Nessa hora, caso necessitem, acionam o cartão de
crédito ou o nome de outro membro da família. E o fluxo de crédito e de consumo
continua.
Porque a unidade familiar se mantém e é confirmada
pelas décadas em que esses consumidores populares foram mantidos nos
subterrâneos de nossa economia.
É por isso que insisto que sem entender a alma
desses consumidores populares, que grandes organizações que atuam na oferta de
crédito estão sentadas em cima de uma bomba relógio.
Os riscos tendem a ser mais graves pelo lado que
oferece crédito abundante sem entender o que motiva e mobiliza a unidade
familiar a honrar seus compromissos.
É para ajudar nossos clientes e parceiros a
entender e a ganhar o respeito e carinho da unidade familiar desses
consumidores que assumi a direção da Agência Consumidor Popular.
* Celso Amâncio é
especialista em concessão de crédito para o consumidor popular
n Foi diretor de crédito da Casas Bahia, de 1976 a 2005, durante a
expansão da rede de 13 lojas para 500 lojas; 90% da expansão da rede foi
garantida, nesse período, com a concessão do crédito e pela fiança emocional,
desenvolvida por Celso Amâncio; desenvolveu a metodologia com a garantia da
inadimplência sustentável; sua experiência como diretor de crédito da Casas
Bahia foi aproveitada negociando a aprovação do Banco Carrefour pelo Banco
Central do Brasil. No Banco Carrefour acumulou a presidência e o cargo C&O
dos serviços financeiros no Brasil.
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